TFFF: Uma falsa solução para as florestas tropicais

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Por Mary Louise Malig e Pablo Solón

O governo brasileiro pretende lançar o Fundo de Financiamento para Florestas Tropicais (TFFF – Tropical Forest Finance Facility em inglês) em novembro de 2025, durante a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Marco das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), em Belém do Pará.

Três países assinaram um acordo na Cúpula do G20 em Bali, em novembro de 2022. Foto: Brazzaville Foundation.

Essa iniciativa, que reúne os países com maior número de florestas tropicais, foi apresentada na cúpula do G20, na Indonésia, em novembro de 2022. Na ocasião, foi anunciado um acordo entre Brasil, Indonésia e República Democrática do Congo, países que juntos detêm aproximadamente 52% das florestas tropicais do mundo.

A ideia desse mecanismo foi concebida há mais de 15 anos por Kenneth Lay, quando ele atuava como executivo sênior no Banco Mundial. En 2018 el Centro para el Desarrollo Global (Center for Global Development) circuló la propuesta de este mecanismo financiero[1] que terminó siendo acogido por el gobierno del Brasil y presentado durante la COP 28 de Dubái en 2023. Desde então, uma equipe composta pelo governo brasileiro, o Banco Mundial, a Lion’s Head Global Partners e outros vem trabalhando em uma proposta detalhada que mantém a sigla TFFF, mas dá a um de seus “Fs” um novo significado: Tropical Forest Forever Facility (Fundo de Florestas Tropicais para Sempre em português).

Até março de 2025, duas notas conceituais sobre o TFFF foram produzidas. A primeira de 5 de julho de 2024 (aqui chamada Versão 1)[1] e a segunda de 24 de fevereiro de 2025 (Versão 2)[2]. Há certos desenvolvimentos, adições e diferenças entre as duas versões que serão destacados ao longo do texto a seguir. Para a Versão 2, o Brasil estabeleceu um Comitê Diretor Interino composto por seis países com florestas tropicais (Brasil, Colômbia, República Democrática do Congo, Gana, Indonésia e Malásia) e seis potenciais países patrocinadores do TFFF (França, Alemanha, Noruega, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Estados Unidos).

US$ 4 por hectare para corrigir uma falha de mercado?

De acordo com a nota conceitual do TFFF de 5 de julho de 2024

“…ao valorar as florestas tropicais em pé e restauradas, o mecanismo(do TFFF) ajudará a solucionar uma falha de mercado atual, ao dar valor aos serviços ecossistêmicos que essas florestas fornecem, incluindo sequestro de carbono, gestão da água, preservação da biodiversidade, proteção do solo, ciclagem de nutrientes, regulação climática continental e global e resiliência climática. A correção dessas falhas de mercado reduzirá a pobreza e promoverá o desenvolvimento econômico, tanto em países com florestas quanto globalmente.” (Versão 1)

O TFFF faz parte da lógica do capitalismo verde, que propõe valorar monetariamente os serviços ecossistêmicos para supostamente conservá-los e evitar sua deterioração e perda. De acordo com esse conceito, o que é gratuito não é cuidado, então se um serviço ecossistêmico tem um preço, ele pode atrair capital buscando lucrar com a manutenção desse serviço. Atualmente, madeira, frutos e raízes têm preços que dependem do tipo e das características da árvore. Esta é a parte material da árvore que já é comercializada. Os serviços ecossistêmicos, por outro lado, referem-se aos aspectos intangíveis de uma árvore, como sua capacidade de produzir oxigênio, armazenar carbono, liberar vapor de água na atmosfera, fornecer abrigo para vários animais e insetos, controlar a erosão, fornecer sombra e executar muitas outras funções ambientais.

Para o capitalismo verde, que frequentemente adota o termo “economia verde”, a crise climática não é um produto da lógica de acumulação de lucro, mas sim o resultado de uma falha do mercado capitalista, que não conseguiu atribuir um valor monetário a esses serviços ambientais para atrair inversões de capital.

O interessante sobre o TFFF é que toda essa discussão sobre a avaliação comercial dos serviços ecossistêmicos desmorona quando sugere que essa falha de mercado poderia ser corrigida pagando US$ 4 por hectare de floresta em pé. US$ 4 por todos os serviços ambientais de um hectare de floresta? Como vimos acima, de acordo com o próprio TFFF, os serviços desses ecossistemas incluem “sequestro de carbono, gestão da água, preservação da biodiversidade, proteção do solo, reciclagem de nutrientes, regulação climática continental e global e resiliência climática”. Esta é uma grande quantidade de funcionalidades essenciais.

Então de onde veio o cálculo?  A verdade é que o valor proposto de US$ 4 por hectare é o resultado de uma estimativa do retorno potencial de um fundo de investimento multilateral, e não de uma tentativa, mesmo que fracassada e impossível, de atribuir um valor aos serviços ecossistêmicos florestais.[1]

O TFFF pretende pagar US$ 4 por hectare anualmente a 1 bilhão de hectares de floresta tropical espalhados por 72 países, conforme listado na Versão 2. A Versão 1 listou apenas 67 “países de floresta tropical de baixa e média renda de acordo com o BIRD”, do Grupo Banco Mundial. Entretanto, a Versão 2 inclui, por exemplo, a China, que é um país de renda média-alta, de acordo com o BIRD. Além disso, a Versão 2 expande a definição de “países com florestas tropicais” para incluir “países dentro dos limites de biomas de florestas tropicais e subtropicais úmidas de folhas largas e áreas de manguezais adjacentes”, o que inclui países como a Argentina.

Área original coberta por florestas tropicais e subtropicais úmidas de folhas largas

Países elegíveis para o TFFF (cinza claro) e áreas de biomas elegíveis dentro desses países (verde), incluindo o bioma de floresta tropical e subtropical úmida de folhas largas e áreas de manguezais adjacentes.

Para pagar US$ 4 por hectare por um bilhão de hectares de floresta tropical em pé, o fundo de investimento precisaria gerar rendimento disponível de US$ 4 bilhões anualmente.

Como eles esperam ganhar US$ 4 bilhões por ano?

De acordo com ambas as notas conceituais do TFFF, gerar esses US$ 4 bilhões exige levantar e investir US$ 125 bilhões. A versão 1 afirma que esses US$ 125 bilhões a uma taxa de retorno anual de 7,5% gerariam um retorno anual de US$ 9,375 bilhões. Desse montante, aproximadamente US$ 5,375 bilhões seriam pagos a investidores públicos e privados, e US$ 4 bilhões seriam distribuídos entre os países, com base na área de suas florestas tropicais remanescentes e descontando certas penalidades por desmatamento que possa ter ocorrido. A Versão 2 argumenta que apenas US$ 3,4 bilhões seriam arrecadados anualmente, mas que US$ 4 por hectare ainda seriam pagos devido aos níveis atuais de desmatamento, o que levaria a vários descontos de penalidades.

Em outras palavras, o TFFF operaria na mesma lógica dos bancos: tomando emprestado dinheiro a uma taxa de juros baixa e depois emprestando-o a taxas de juros mais altas com o objetivo de obter lucro. O TFFF emprestaria para si US$ 125 bilhões a uma taxa de juros anual de 4,4% (4,9% na Versão 2) e faria vários investimentos para obter um retorno médio de 7,5% (7,6% na Versão 2), o que lhe deixaria com um lucro de 3,1% (2,7% na Versão 2) sobre seu capital, que seria distribuído entre os países com florestas tropicais.

A nota conceitual esclarece que os US$ 125 bilhões seriam principalmente empréstimos, não doações.

“O TFFF não depende de subsídios de doadores, sujeito aos caprichos de novos regimes ou às mudanças nas prioridades orçamentárias de países ricos, mas oferece uma proposta sólida e atraente para investidores patrocinadores, gerando retornos competitivos de mercado.” (Versão 2)

Garo Batmanian, diretor do serviço florestal do Brasil e um dos idealizadores do TFFF, reforça essa ideia: “O que estamos pedindo é um investimento”.

No TFFF haveria duas classes de investidores:

  1. Os Patrocinadores do TFFF seriam países de alta renda, organizações multilaterais como o Banco Mundial, ONGs internacionais e organizações filantrópicas, que seriam solicitados a fazer um investimento único e totalmente reembolsável.
  2. Os Investidores de Mercado seriam recrutados nos mercados de capitais de dívida por meio da emissão de títulos de longo prazo e de alta classificação para investidores que buscassem um retorno um pouco maior do que o oferecido por títulos do governo em países como os Estados Unidos.

Os “patrocinadores do TFFF” contribuiriam com 20% dos US$ 125 bilhões e alavancariam os 80% restantes de “investidores de mercado”. Os primeiros investiriam US$ 25 bilhões e os segundos, US$ 100 bilhões. Esses investimentos seriam retornados em 20, 30 ou 40 anos, dependendo das condições dos títulos adquiridos pelos diferentes tipos de investidores públicos e privados.

Ainda não está claro quais países emprestariam ao TFFF e em que condições para atingir os primeiros US$ 25 bilhões, que representam 20% do fundo.

“Se a meta de US$ 25 bilhões para capital patrocinado comprometido não for atingida antecipadamente, o TFFF reduzirá proporcionalmente o pagamento por hectare nos anos iniciais e buscará continuar arrecadando fundos até que a meta de financiamento seja atingida.” (Versão 1) (Versão 1)

Os 100 bilhões de euros em investimentos de “investidores de mercado” também não estão garantidos. É tudo um castelo de cartas, já que incêndios florestais e desmatamento devastam três milhões e meio de hectares de floresta tropical a cada ano.

Os US$ 4 bilhões anuais estão garantidos?

Ambas as versões do TFFF reconhecem que se menos de US$ 125 bilhões forem arrecadados ou se a taxa de retorno for inferior a 7,5%, o pagamento por hectare poderá ser inferior a US$ 4 ou poderá ser suspenso “temporariamente”. Isso confirma que o pagamento por florestas em pé não é uma resposta à sua importância, mas sim um jogo financeiro típico de qualquer banco capitalista.

A ex-ministra do Meio Ambiente da Colômbia, Susana Mohammad, durante a Cúpula da Biodiversidade da COP 16, expressou seu apoio ao TPPP, afirmando que “o que os países com recursos naturais querem é um fluxo de fundos suficiente, previsível e constante para as instituições públicas, para que possamos fortalecer a governança dos ecossistemas”5[1]. US$ 4 por hectare são suficientes, previsíveis e consistentes? A versão 1 do TFFF afirma que “como o TFFF é um fundo de investimento, seus retornos não podem ser garantidos” e acrescenta:

“Ao adquirir ativos de longo prazo, o TFFF garante um fluxo de renda previsível, mas está sujeito ao risco de reinvestimento e à volatilidade do valor de mercado de sua carteira de ativos. Caso o valor de mercado caia abaixo de certos limites importantes, poderá ser necessário reduzir a taxa de pagamento às Nações com Florestas Tropicais. No entanto, precedentes históricos mostram que isso só ocorreria em circunstâncias excepcionais.” (Versão 1) (Versão 1)

Os financistas e banqueiros por trás da proposta do TFFF não sabem que, precisamente por causa do agravamento da crise climática, da crise do capitalismo e das disputas geopolíticas imperiais, as “circunstâncias excepcionais” estão se tornando o novo normal. Em todas as análises de risco que realizam, eles sempre concluem que, se houver problemas, eles serão muito temporários e administráveis.

Ambas as versões da nota conceitual admitem que tudo poderia terminar em um “encerramento ordenado” do mecanismo:

“Em caso de esgotamento permanente do valor dos ativos do TFFF, o TFFF reduziria os pagamentos atuais e futuros por hectare para restaurar sua sustentabilidade financeira. Isso poderia resultar em um período de pagamentos em atraso aos Países com Florestas Tropicais classificados. Se o TFFF deixasse de ter classificação de grau de investimento, tentaria iniciar uma liquidação ordenada.” (Versão 1)

Um novo mercado de carbono?

O TFFF seria um mecanismo que não geraria créditos de carbono ou de biodiversidade, nem permitiria “offsetting” ou compensação, como créditos de carbono, que são permissões para continuar poluindo em um determinado local por meio da compra de certificados de redução de emissões em outro lugar. O TFFF seria diferente, mas complementar aos mercados de carbono do REDD+. Enquanto o REDD+ contabilizaria as toneladas de carbono que supostamente seriam reduzidas, o TFFF buscaria recompensar por hectare de floresta em pé.

Ambas as versões do TFFF argumentam que as florestas são subfinanciadas globalmente por meio do REDD+ em comparação ao valor dos serviços ecossistêmicos que elas fornecem.

“Até o momento, a escala do apoio REDD+ tem sido muito insuficiente em comparação às necessidades. Apenas 3% do financiamento climático internacional apoia as florestas, embora elas tenham o potencial de fornecer até 30% da mitigação necessária para atingir as metas climáticas globais.” (Versão 1) (Versão 1)

Para tanto, o TFFF visa “valorar” melhor esses serviços ecossistêmicos e evitar as complicações que os projetos REDD+ enfrentam relacionadas à “adicionalidade, vazamentos e permanência” das reduções de emissões decorrentes da redução do desmatamento. O TFFF afirma ser “um mecanismo de apoio para toda a gama de serviços ecossistêmicos de florestas tropicais menos comercializáveis” (Versão 1).

Embora o TFFF não gere créditos de carbono negociáveis, esse mecanismo poderia ser usado para fazer greenwashing em empresas que investem nele:

“Os investidores em títulos do TFFF não poderão contabilizar seus investimentos como compensação para qualquer esquema vinculado ao carbono, mas o TFFF reportará o impacto de seus investimentos e sua participação no capital do TFFF. Os investidores de mercado poderão atribuir o impacto de seus investimentos em termos de sequestro de carbono, produção de CO2 evitada e proteção da biodiversidade.” (Versão 1) (Versão 1)

De acordo com ambas as notas conceituais do TFFF, os países que aceitarem o desafio desse mecanismo serão motivados a buscar recursos do REDD+ para atingir suas metas e atingir seus objetivos, permitindo que o TFFF “potencialize o REDD+”.

A preocupação com “pagamentos duplicados” por meio do TFFF e do REDD+ provavelmente tem sido uma grande preocupação para potenciais patrocinadores do TFFF, e é por isso que a Versão 2 inclui um anexo dedicado exclusivamente a esse aspecto.

Os Estados acima dos povos indígenas

Ambas as notas conceituais do TFFF afirmam que pagamentos de quatro dólares por hectare de floresta em pé seriam desembolsados aos respectivos ministérios das finanças dos países participantes do mecanismo.

Cada governo beneficiário será livre para tomar suas próprias decisões sobre a alocação interna de recursos recebidos do Mecanismo TFFF, em vez de o Mecanismo ditar uma regra universal.” (Versão 1) (Versão 1)

“O TFFF não determina como os países com florestas tropicais usarão os fundos alocados a eles.” (Versão 2) (Versão 2)

A justificativa para essa abordagem é desenvolvida em um quadro citando o Centro para o Desenvolvimento Global na Versão 1: 

“O auxílio em dinheiro na entrega (COD) difere de outros programas porque evita impor pré-condições e não exige acordos entre financiadores e beneficiários sobre estratégias para alcançar resultados. As únicas “condições prévias” relevantes para a ajuda COD são uma boa medida do progresso e uma forma credível de o verificar. Uma das principais características da ajuda COD é que o financiador adota uma abordagem não intervencionista, enfatizando a propriedade do país e o poder dos incentivos para gerar resultados, em vez de financiar projetos que forneçam orientação ou assistência técnica. No modelo de auxílio COD, em nenhum momento o financiador especifica ou monitora os insumos. Da mesma forma, o financiador não impõe condições ou restrições ao uso dos fundos (pagamentos de recompensa). Ele fornece aos países beneficiários total autoridade e flexibilidade para empreender intervenções ou abordar questões políticas que levem aos resultados desejados, mesmo que essas intervenções e políticas estejam fora do escopo do ministério competente ou da entidade governamental subnacional.” (Versão 1) (Versão 1)

Em relação ao pagamento ou financiamento que os atores locais diretamente envolvidos em garantir que “as florestas permaneçam intactas” receberão, como “governos locais, empresas, proprietários de terras individuais, comunidades indígenas, etc.”, a Versão 1 declarou que cada país beneficiário se comprometeria a “alocar diretamente ou por meio de algum tipo de mecanismo de financiamento específico” uma parte dos fundos recebidos.

“O TFFF fará pagamentos anuais aos Ministérios das Finanças das Nações com Florestas Tropicais. Propõe-se que uma porcentagem mínima [a ser acordada] seja alocada diretamente àqueles que efetivamente conservam as florestas, como comunidades locais e gestores de áreas protegidas…” (Versão 1) (Versão 1)

A versão 2 define essa porcentagem em 20% para povos indígenas e comunidades locais. Em algumas partes do documento diz 20% e em outras diz pelo menos 20%. Isso significa que dos US$ 4 por hectare de floresta em pé que cada país receberia, 80 centavos seriam pagos diretamente, ou um mecanismo de financiamento seria estabelecido, para povos indígenas e comunidades locais. A nota conceitual não aborda como agiria em relação a países que não reconhecem a existência de povos indígenas dentro de suas fronteiras nacionais, como a China, ou países que aplicam o reconhecimento discricionário dos direitos dos povos indígenas.

Esta versão mais recente da nota conceitual afirma que os povos indígenas e as comunidades locais possuem ou administram 54% das florestas intactas restantes do mundo6[1] e, para falar sobre os outros atores no local, ela se refere aos “custódios” (stewards em inglês) das florestas, sem desagregá-los como a primeira versão fez em “governos locais, empresas, proprietários de terras individuais”. Para esses “custódios”, a segunda versão não estabelece a porcentagem que eles devem receber dos US$ 4 por hectare. Ele simplesmente afirma: “Países com florestas tropicais são incentivados a alocar os fundos restantes aos guardiões das florestas, aqueles que contribuem diretamente para a manutenção das florestas conservadas”.

Parte do dinheiro que os países receberiam teria que ser usado para estabelecer e/ou pagar por um “sistema transparente, padronizado e confiável para medir a cobertura florestal nativa, que poderia ser o sistema do próprio país ou de terceiros”.

“A observação por satélite será o principal meio de monitoramento do desempenho. Propõe-se que o TFFF estabeleça parâmetros técnicos mínimos padronizados globalmente para que o sistema nacional de monitoramento da cobertura florestal seja considerado confiável e transparente (por exemplo, resolução, processamento de nuvens, frequência, meios de disseminação de informações).” (Versão 1)

Em suma, estamos diante de um mecanismo criado para financiar governos nacionais e não os atores realmente envolvidos na preservação das florestas. A isto se soma a preocupação: o que significa que “as florestas permaneçam intactas”? As comunidades indígenas não poderão utilizar madeira ou realizar pequenas roças para garantir sua subsistência? Em um sentido mais amplo, a estratégia do TFFF é essencialmente conservacionista ou é uma abordagem de coexistência com a floresta, como é a prática dos povos indígenas?

¿Quem é responsável pela dívida?

Ambas as notas conceituais não esclarecem onde e como os empréstimos dos países patrocinadores e os títulos que seriam emitidos para investidores do mercado serão registrados. Quem é o devedor? Quem os investidores processarão se não receberem seus juros e capital de volta? Ao TFFF ou aos países que se beneficiam do mecanismo? Quem será responsável em caso de falência? Ou será que os investidores públicos e privados fariam investimentos arriscados nos quais, se houver retorno, eles recebem seu capital de volta com juros e, se der errado, perdem tudo? Se este último fosse o caso, nenhuma das versões do TFFF o declara explicitamente. Isso levanta a questão de se a dívida externa dos países com florestas tropicais que fariam parte do mecanismo não aumentaria, já que a primeira versão afirma: “Em sua forma mais simples, cada país teria uma propriedade equivalente à sua floresta em pé como uma porcentagem da floresta em pé global.”

Quem teria o poder de decisão?

A segunda versão da nota conceitual propõe que haveria duas estruturas de governança distintas e independentes sob a égide do TFFF. Um seria o Fundo de Investimento e o outro o mecanismo de distribuição de lucros. O primeiro é chamado de “Tropical Forest Investment Fund (TFIF)” e a segunda, de “Facility”.

O Fundo de Investimento seria responsável por administrar os empréstimos e títulos de investidores públicos e privados, investindo o capital de US$ 125 bilhões e, após deduzir todas as despesas (juros, reembolso de capital a partir do décimo ano e custos operacionais), entregaria os lucros à “Facility” para distribuição.

A “Facility” determinaria quais países atenderiam aos requisitos para fazer parte do mecanismo, monitoraria a cobertura florestal, aplicaria penalidades para o desmatamento e pagaria aos governos US$ 4 por hectare de floresta em pé.

A “Facility” e o Fundo de Investimento teriam conselhos de administração separados e independentes. O conselho da “Facility” seria composto por 18 membros, nove dos países patrocinadores do fundo e nove de países com florestas tropicais. Cada país patrocinador que contribuísse com mais de 11% dos primeiros US$ 25 bilhões teria um assento no conselho. Por outro lado, países com florestas tropicais nas regiões das Américas, África e Ásia teriam três representantes por região. Um seria o país com mais florestas tropicais em cada região (Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia), o outro seria o país com os menores níveis de desmatamento em cada região, e o terceiro seria escolhido de forma rotativa.

O conselho de administração do Fundo de Investimento seria composto por profissionais experientes nomeados pelos países patrocinadores com base nas recomendações de um comitê independente. Os membros do conselho do fundo de investimento receberiam uma remuneração financeira, embora seus cargos não fossem de tempo integral.

Tanto o Fundo de Investimento quanto a “Facility” compartilhará um único secretariado e um único administrador (trustee em inglês), que seria um “Banco Multilateral de Desenvolvimento”, provavelmente o Banco Mundial.

O TFFF e o Roteiro de Baku a Belém

O financiamento climático é uma das questões mais controversas nas negociações climáticas, superado apenas pela baixa ambição dos compromissos de redução de emissões dos países industrializados. 

Em 2009, durante a COP15 em Copenhague, os países desenvolvidos se comprometeram a arrecadar US$ 100 bilhões anualmente até 2020 para ajudar os países em desenvolvimento a lidar com as mudanças climáticas. Essa promessa de “apoio financeiro maior, novo, adicional, adequado e previsível” foi consagrada no Acordo de Cancún sob o termo “mobilizar e fornecer” US$ 100 bilhões anualmente até 2020, o que significa que os países desenvolvidos não estavam se comprometendo a fornecer todos esses fundos, mas sim “mobilizariam” a soma por meio de subsídios, Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD) recategorizada, empréstimos, mercados de carbono e investimento privado.

Os países desenvolvidos não cumpriram sua promessa para 2020. Mesmo com todos os truques de linguagem nos acordos climáticos, foi somente em 2022 que eles anunciaram que haviam “fornecido e mobilizado” mais de US$ 100 bilhões para países em desenvolvimento, esquecendo que esses fundos deveriam ser “novos e adicionais”.[1]

O Fundo Verde para o Clima, lançado em Cancún em 2010 e destinado a ser o principal mecanismo de financiamento climático para países em desenvolvimento, arrecadou menos de US$ 17 bilhões em quinze anos.

O Acordo de Paris de 2015 não aumentou a promessa dos países desenvolvidos de “mobilizar” US$ 100 bilhões anualmente e, em vez disso, estabeleceu uma Nova Meta Quantificada Coletiva (NCQG) para financiamento climático até 2025.

No final de 2024, a Conferência das Partes do Acordo de Paris em Baku, Azerbaijão, aprovou uma decisão sobre a Nova Meta Coletiva Quantificada, que estabelece uma meta para os países desenvolvidos “mobilizarem” US$ 300 bilhões anualmente até 2035 de “uma ampla[1] Esta decisão também incentiva os países em desenvolvimento a contribuírem para esse financiamento por meio da cooperação Sul-Sul.

Da mesma forma, a COP 29 estabeleceu um “Roteiro de Baku a Belém” para aumentar o financiamento climático anual para US$ 1,3 trilhão até 2035 para “países em desenvolvimento com baixas emissões de gases de efeito estufa”. Este “Roteiro de Baku a Belém para 1,3 trilhão” buscará avançar com a participação de “todas as partes interessadas” e será desenvolvido sob as presidências do Azerbaijão e do Brasil para a COP 30.

O Brasil apresentará o TFFF como uma contribuição ao Novo Objetivo Quantificado Coletivo (NCQG), que busca “mobilizar” recursos de investidores públicos e privados.

Alternativas a partir da Natureza e das pessoas

Devemos partir de uma visão que reconheça as florestas tropicais como sujeitos de direitos, não como provedoras de serviços ecossistêmicos suscetíveis à mercantilização por meio de instrumentos bancários. Para salvar as florestas tropicais, é essencial reconhecer que não estamos diante de uma falha de mercado, mas sim de sistemas de vida que têm o direito de viver, de preservar seus ciclos de vida e sua capacidade de regeneração, de não serem destruídos ou poluídos, de manter sua integridade e diversidade, e de exigir reparação e restauração oportunas daqueles que contribuíram e continuam a contribuir para sua destruição. As árvores não podem ser acionistas, como absurdamente alegam os colunistas que promovem o TFFF[1]. As florestas são comunidades complexas e dinâmicas onde árvores, plantas, animais, microrganismos e comunidades humanas interagem. Os povos indígenas se destacam pela prática ancestral de convivência com a floresta. Esses sistemas de vida, longe de serem tratados como objetos e mercadorias, devem ter o direito de processar e exigir indenização das corporações e governos responsáveis por sua destruição.

Para preservar esses meios de subsistência, é necessário fortalecer as soluções reais que já estão sendo desenvolvidas por territórios indígenas, comunidades camponesas, comunidades negras, quilombolas, comunidades tradicionais e organizações de base. Esses são os atores que devem estar no centro da governança e os principais beneficiários de qualquer mecanismo de financiamento que realmente vise contribuir para a salvação das florestas tropicais.

Não podemos recompensar governos nacionais por hectares de floresta em pé sem exigir que eles tomem medidas decisivas para limitar e reverter a expansão irracional das plantações de monoculturas (soja, dendê, cana-de-açúcar, etc.), coibir a pecuária insustentável, a mineração, a extração de combustíveis fósseis, as mega-infraestruturas, o turismo de massa, os mercados de carbono e o tráfico de animais. É uma grande ilusão acreditar que alocar um pagamento por hectare resolverá esses problemas estruturais do capitalismo, que são impulsionados principalmente pelo capital privado e pelas empresas, bem como pelos Estados nacionais.


É fundamental que qualquer iniciativa promova regulamentações nacionais em países com florestas tropicais para proibir a exportação de produtos que contribuem para o desmatamento e, em vez disso, fornecer incentivos para produtos agroecológicos que contribuam para o bem-estar e a restauração das florestas. É necessário um quadro regulatório internacional para sancionar empresas e países que compram produtos que destroem florestas tropicais. Qualquer mecanismo de financiamento deve estabelecer claramente sanções para estados que perseguem ou toleram ataques e assassinatos contra defensores da natureza e dos povos indígenas. 

Qualquer mecanismo de financiamento para florestas tropicais deve alocar de forma direta e transparente a maior quantidade de recursos aos povos indígenas, comunidades locais, áreas protegidas e governos locais que efetivamente preservam esses meios de subsistência.

É possível arrecadar seis vezes mais recursos anuais do que o TFFF (US$ 26,4 bilhões) alocando apenas 1% dos orçamentos de defesa de todos os países para um fundo para esses sistemas de suporte de vida. É inaceitável que as despesas militares sejam financiadas com recursos públicos enquanto a sobrevivência das florestas depende do mercado de ações. Um imposto de apenas um dólar americano por barril de petróleo poderia arrecadar quase dez vezes mais anualmente (US$ 38 bilhões) do que os US$ 4 bilhões que o TFFF espera arrecadar por meio de investimentos não garantidos em tempos de crise climática e da crise crônica do capitalismo.

A sobrevivência das florestas tropicais nunca será garantida por meio de falsas soluções que buscam gerar receita para governos nacionais e lucros para investidores privados, em vez de resolver a crise que esses meios de subsistência enfrentam. Os debates sobre o “Roteiro de Baku a Belém” são uma distração, pois nosso verdadeiro desafio é evitar que incêndios devastem as florestas tropicais novamente este ano. O destino das florestas tropicais não depende das negociações da COP 30 — que, como suas antecessoras, é cooptada por interesses corporativos —, mas sim do que nós, como sociedade civil, comunidades locais e povos indígenas, fizermos para construir e multiplicar territórios livres de incêndios, desmatamento e violência contra esses sistemas de vida.


[1] Center for Global Development, Proposed Governance Arrangements for TFFF, https://www.jstor.org/stable/pdf/resrep29744.4.pdf https://www.cgdev.org/sites/default/files/tropical-forest-finance-facility.pdf

[2] Ministry of Finance and Ministry of the Environment and Climate Change of Brazil, Tropical Forest Finance Facility (TFFF), Concept Note, 5 July 2024.

[3] Ministry of the Environment and Climate Change, Ministry of Finance, and Ministry of Foreign Affairs of Brazil, Tropical Forest Forever Facility (TFFF), Concept Note, 24 February 2025.

[4] O conceito de serviços ambientais ou serviços ecossistêmicos é um termo altamente controverso porque vê a natureza não como um todo do qual fazemos parte, mas como um provedor de serviços que podem ser identificados, fragmentados, isolados, monetizados e mercantilizados.

[5] Na COP16, cinco países confirmam apoio ao Fundo Florestal Tropical, Presidência da República do Brasil, https://www.gov.br/secom/es/ultimas-noticias/2024/10/en-la-cop16-cinco-paises-confirman-su-apoyo-al-fondo-para-los-bosques-tropicales

[6] Katie Reytar, Peter Veit and Johanna von Braun, Protecting Biodiversity Hinges on Securing Indigenous and Community Land Rights, https://www.wri.org/insights/indigenous-and-local-community-land-rights-protect-biodiversity

[7] OECD, Climate Finance Provided and Mobilised by Developed Countries in 2013-2022.

[8] https://unfccc.int/documents/644460

[9] Manuela Andreoni, Una idea ‘elegante’ para financiar la protección de árboles. The New York Times en español, https://www.nytimes.com/es/2024/10/03/espanol/fondo-financiar-proteccion-bosques.html